A Constituição exige responsabilidade do Congresso Nacional

Artigo de Alessandra Nilo, coordenadora geral da Gestos e cofaciitadora do GT Agenda 2030, publicado originalmente no portal Congresso em Foco em 5 de outubro de 2020

O Brasil vive um longo e conturbado processo que resultou, a partir de mensuração quantitativa, que apenas reflete a superfície do contexto político, em mais uma década perdida, a primeira desde a redemocratização. O recém-lançado IV Relatório Luz do GT da Sociedade Civil para a Agenda 2030 no país (RL 2020), que analisa a implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) desde sua assinatura, em 2015, até o primeiro semestre deste ano, expõe um quadro de evidentes (porque o faz com evidências) retrocessos econômicos, sociais e ambientais que comprometem a capacidade do país de reagir à sua prolongada estagnação e cumprir os preceitos da Constituição Federal, que neste 5 de outubro completa 32 anos. Especialmente agora, no contexto da Covid-19.

Hoje é um dia importante para lembrar que a aprovação da Emenda Constitucional 95 em 2016, o midiatizado Teto de Gastos, sob uma premissa fiscal de conjuntura marcada por uma recessão singular de três anos, colocou uma camisa de força no planejamento orçamentário de áreas essenciais para o país, reduzindo os investimentos no desenvolvimento humano – saúde, educação, assistência social, ciência e tecnologia – para cumprir contratos de dívida pública. Gastos em infraestrutura de cimento e concreto, no entanto, não foram afetados pelos cortes, o que indica a falta de entendimento generalizado sobre o que alimenta a dívida pública: baixo retorno nos gastos públicos em infraestrutura executada abaixo do padrão internacional por empresas privadas, resultante tanto de incapacidade técnica quanto de desvios ético-políticos.

Portanto, mesmo cortando recursos essenciais para a área social e de fomento à inovação e criatividade, a EC 95 não reduziu a dívida pública como prometido. Ao contrário, ela continuou crescendo. Tampouco afetou positivamente o déficit primário, o principal foco dessa emenda, mas foi eficiente em comprometer a capacidade de desenvolvimento nacional também em médio e longo prazos. Somos o quinto país mais desigual do mundo, mesmo sendo nono em tamanho do PIB e seguimos dependentes de volumes de exportação de produtos primários de baixo valor agregado, presos na armadilha das commodities, com políticas econômicas que se negam a investir em desenvolvimento humano e, assim, conseguir diversificar a matriz produtiva.

A primeira mudança necessária, hoje, passa pela própria nomenclatura. O orçamento para a área social não é, e não pode ser enunciado em discursos e narrativas, como gasto, pois é, de fato, um investimento com alto retorno, um meio para um país se tornar desenvolvido e se constituir uma nação inclusiva.

Hoje também é dia para lembrar que os projetos de lei para o orçamento federal de 2021 – PLOA e PLDO –, enviados pelo Executivo ao Congresso Nacional, continuam o caminho de retrocesso da agenda de direitos constitucionais, ampliando as lacunas de financiamento para a saúde, educação, segurança alimentar e assistência social, enquanto aumenta significativamente os recursos para os ministérios da Defesa (~2%), Segurança Pública (~3%) e Cidadania (~9%), sendo este um organismo puramente ideológico sem ações efetivas, como mostra o Relatório Luz 2020, com o desinvestimento em áreas estratégicas como o Bolsa Gestante e o programa de redução da violência contra a mulher.

As soluções existem. E elas baseiam-se em dados e evidências – é isso que mostra a coalizão de organizações da sociedade civil, a Direitos Valem Mais, que em parceria com economistas da academia e de instituições de controle e monitoramento público produziu uma nota técnica que demonstra quais os pisos mínimos necessários para quatro áreas essenciais para o desenvolvimento humano no Brasil. Apenas em saúde e educação a lacuna de financiamento é superior a R$ 80 bilhões, acelerando o afastamento do país do caminho dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, da erradicação da pobreza e da redução das desigualdades. Ao concluir a leitura dessa nota certamente não sobram dúvidas de como a atual política econômica está sendo conduzida com má fé, parte de um desmonte e desarticulação institucional sem precedentes no período democrático, ignorando direitos assegurados pela Constituição Federal. Diante de tal quadro, cabe ao Congresso Nacional a responsabilidade de “garantir que a Constituição caiba no orçamento”.

A teoria econômica tem mudado muito rapidamente no debate internacional. A narrativa repetitiva do Estado mínimo e outras teses neoliberais defendidas sem questionamento nos corredores do Congresso e em telas de TV já não tem mais qualquer crédito em face da necessidade imposta pela pandemia da Covid-19. O Estado mostrou-se o ente mais importante de qualquer economia, o garantidor e investidor de última instância para o desenvolvimento de uma nação. Na hora do aperto, o capital privado, tão adorado em discursos, não apresentou alternativa alguma e foge para paraísos fiscais (RL 2020).

É grave que o Estado brasileiro siga tentando fugir de seus deveres, principalmente com a desculpa de falta de recursos. Não após a pandemia mostrar a facilidade com que o Banco Central abriu a torneira monetária e injetou centenas de bilhões de reais para manter o mercado de capitais funcionando, enquanto a defesa da continuidade da renda emergencial para as pessoas mais vulneráveis suscita as mais bizarras e cruéis admoestações.

Ademais, é preciso que o Congresso Nacional entenda que o Brasil é um país ainda atrasado e em desenvolvimento arrastado, que mesmo tendo acesso a tecnologias compatíveis no mundo, não produz nem cria tais tecnologias. Somos dependentes e não devia haver menor orgulho nisso. Para sair desse ciclo, só tem um jeito: investir nas pessoas e, para isso, mudar os PLOA e PLDO enviados. Já passou da hora, mas nunca é tarde para protagonizar a defesa dos princípios e direitos fundamentais da Constituição, a nossa vilipendiada aniversariante do dia.

Leia aqui a publicação original.

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