Se não agora, então quando mudar o jogo?

Na hora H da pandemia Covid-19 os governos agiram de forma errática e falharam
A Organização das Nações Unidas nasceu de um longo processo de esclarecimento de gerações de políticos, diplomatas e profissionais das relações internacionais, mas foi efetivamente criada no inverno da maior atrocidade humanitária do século XX, um momento inesquecível e extraordinário. Mais de 75 milhões de vidas foram depostas para que a humanidade, enquanto conceito primário coletivo, pudesse evoluir mais um passo em sua escala de desenvolvimento. O avanço científico e tecnológico é a maior evidência do estágio evolutivo dos humanos em termos práticos e materiais, mas não mostram a paisagem inteira de onde estamos em termos de maturidade política. E aí está o problema, foi detectado pela própria ONU em um conjunto de conferências internacionais nos anos 1990.
Encerrou-se há pouco mais de um mês o Fórum Político de Alto Nível (HLPF, na sigla em inglês), de 6 a 15 de julho, sob auspícios do Conselho Econômico e Social da ONU (ECOSOC), seguimento da Agenda 2030 através do monitoramento dos objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS). Dezenas de países apresentam anualmente seu relatório nacional voluntário (VNR) sobre o estado das iniciativas que estejam relacionadas à transição para um modelo de desenvolvimento que não cause tantos problemas em seu acúmulo de efeitos adversos, ou tantas externalidades negativas ao conjunto de sua sociedade e seu território.
O resultado do HLPF foi decepcionante. Mais do mesmo discurso ameno de que a iniciativa privada e os ganhos tecnológicos irão salvar a humanidade de seu acelerado caminho para auto-aniquilação. Justamente o que a Agenda 2030 reconhece como as maiores causas do processo de destruição socioambiental.
O governo do Brasil até agora apresentou apenas um VNR, em 2017, um documento que contém uma narrativa no mínimo fantasiosa diante dos próprios dados apresentados, como atestou o Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 no Brasil (GT Agenda 2030) em seu primeiro Relatório Luz, também lançado no Fórum daquele ano, com uma análise independente das mesmas evidências.
Há um mês, o GT Agenda 2030 publicou a quinta edição do Relatório Luz do Desenvolvimento Sustentável no Brasil. Como era de se esperar, o país vem se afastando rapidamente da sustentabilidade ao adotar as políticas mais destrutivas e concentradoras que se tem notícia desde a promulgação da Constituição Federal, em 1988. Como colocou Alessandra Nilo, coordenadora da ONG Gestos, na Audiência Pública de lançamento da publicação na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados: “o Brasil está na vanguarda do retrocesso”. Nenhuma das 169 metas dos ODS teve progresso satisfatório, enquanto mais de 82% delas está em retrocesso (54%), estagnada (16%) ou ameaçada (12%). E esconder esta evidência faz parte de uma política proposital de apagão de dados, como vimos no imbroglio do Censo 2020 e dos dados epidemiológicos da pandemia.
A Covid-19 fornece outro daqueles momentos extraordinários da história para o amadurecimento político. Mas como admitiu o Secretário Geral da ONU, “a Covid-19 nos testou e falhamos. O entendimento e a solidariedade esperada não apareceram”, referindo-se à desigualdade vacinal e suas consequências de exclusão. Este é o jogo que vem sendo jogado e, embasado na Declaração Ministerial do HLPF deste ano, é o jogo conveniente dos “negócios de sempre”. O que se aplica em versão deluxe no Brasil da propina da vacina, da cloroquina e da negação do bom senso e da ciência também por conveniência do jogo político que despreza a responsabilidade cívica.
Enquanto a Covid-19 apresentou os desafios prementes da globalização de infecções, ela é apenas o prelúdio dos desafios crescentes oferecidos pela intensificação da emergência climática. Como alerta fica a pergunta proferida pelo presidente da Assembleia Geral da ONU, “se não agora, então quando?”, referindo-se ao momento extraordinário. Ao que a sociedade civil organizada responde sem titubear: mudar o jogo, ou aceleramos o pior para quando ninguém estará a salvo.
Por Claudio Fernandes, economista.