A fábrica de fazer pobres

Artigo de Francisco Meneses, ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e analista de políticas da ActionAid (organização internacional de combate à pobreza) no Brasil, publicado no jornal Folha de S. Paulo em 19 de fevereiro de 2020
Não é só a crise, mas as escolhas para enfrentá-la
“Só nos resta pedir para que eles lembrem dos pobres.” Esta frase, dita à Folha por uma mulher que aguarda há quase um ano sua entrada no Bolsa Família, muito revela sobre o quadro de extrema pobreza no Brasil e sobre as formas utilizadas para reverter o grave cenário.
Por falta de dinheiro, como diz a reportagem publicada em 10 de fevereiro, o governo passou a controlar a entrada de novas famílias no programa, deixando 1 milhão delas na fila de espera em janeiro. O orçamento do Bolsa Família, aprovado pelo Congresso Nacional para este ano a partir da proposta enviada pelo governo federal, além de não prever a inclusão de novos beneficiários poderá ainda obrigar a exclusão de outros tantos, assim como não permitirá qualquer reajuste no valor repassado. Observe-se que o valor mensal médio, corrigido pelo INPC de 2019. foi quase 7% inferior ao que foi pago em 2014.
Isto se dá em um contexto de crescimento da pobreza e, sobretudo, da extrema pobreza no Brasil. E já se vão quatro anos que a Síntese dos Indicadores Sociais, divulgada pelo IBGE, vem dando a má notícia. Em 2018, de acordo com a última publicação, a pobreza até retrocedeu ligeiramente, mas aqueles que foram jogados em um estado de miséria tornaram-se ainda mais numerosos, somando 13,5 milhões de pessoas – o maior ídice desde 2012. O diagnóstico dessa situação, em geral, se repete: a crise econômica seria a responsável por triste sina.
De fato, a crise e a recessão que dela resultou tornaram o país mais pobre. Mas qual foi a medicação aplicada frente ao diagnóstico? Acenando-se com a retomada de um crescimento econômico que até agora não chegou de forma convincente, propagou-se a ideia da austeridade como sinônimo de seriedade e responsabilidade nas contas públicas. Mas austeridade para quem? Os dados disponíveis mostram quem ficou responsável por pagar a conta. Nos últimos quatro anos, o rendimento dos 40% com menor poder aquisitivo decresceu, enquanto que os 10% mais ricos viram sua renda aumentar.
O agravamento da situação de miséria de milhões de brasileiros é facilmente percebido nas ruas, ao mesmo tempo em que a fome volta a fazer parte da realidade de quem vive em áreas mais vulneráveis, como o semiárido nordestino. Portanto, há que se avaliar o caminho escolhido, assumindo-se que não existe uma única fórmula para enfrentar a dita crise.
A opção que foi tomada não apostou em uma reforma tributária progressiva e no potencial do investimento público. O receituário aplicado teve como centro a inusitada PEC do teto de gastos aprovada no final de 2016, cujos cortes recaem pesadamente sobre os gastos sociais. Radicalizam-se as políticas mais restritivas que já vinham sendo experimentadas e projeta-se um país ingovernável para breve. O desemprego dobrou o índice de cinco anos antes, na esteira de duas reformas trabalhistas que prometiam a multiplicação de empregos e entregaram informalidade e precarização. E o resultado não poderia ser diferente do que cada Síntese dos Indicadores Sociais nos últimos anos vem mostrando.
Mais além da pobreza monetária aqui já comentada, a desigualdade e a falta de acesso a serviços públicos essenciais continuam a castigar as camadas mais vulneráveis da população. A assistência do Estado àqueles mais necessitados vai se reduzindo. Não só o Bolsa Família, mas outros programas que formavam o chamado “colchão de proteção social” vão sendo esvaziados ou extintos. Exemplo claro é o que ocorre com o Programa de Cisternas, premiado internacionalmente, mas que no ano passado instalou somente 30 mil dessas tecnologias sociais – algo muito abaixo das 149 mil instaladas em 2014.
Então, que se assuma sem subterfúgios. Não se trata apenas da crise, mas das escolhas feitas para enfrentá-la. E essas escolhas, como os dados também mostram, aprofundaram as diversas desigualdades no país e, por consequência, o empobrecimento de parte de nossa população. Enquanto não for revisto o caminho adotado, os indicadores não irão alterar sua rota, e a fábrica que produz pobreza e extrema pobreza continuará a funcionar celeremente.
Ilustração: Troche/Folha de S. Paulo.
Leia aqui a publicação original.
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