Lentidão demais para sair do papel

Prazo para cidades entregarem planos de mobilidade já foi adiado três vezes atrasando avanços que possibilitariam uma circulação urbana melhor e mais sustentável no país

O calendário inicial apontava abril de 2015, como meta final. Não deu certo. Na sequência, as cidades brasileiras ganharam mais três anos, até abril de 2018, para concluir a tarefa de elaborar seus planos de mobilidade urbana. O prazo também não foi cumprido. Por último, estabeleceu-se como limite o mês de abril deste ano, mas até agosto de 2019, apenas 201 municípios atenderam a exigência e outros 135 estavam com projetos em andamento.

Os números são do levantamento que faz parte do Relatório Luz da Agenda 2030 do Desenvolvimento Sustentável 2019, documento elaborado pelo Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030, GT Agenda 2030, coalizão que reúne mais de 40 organizações, redes e fóruns da sociedade civil que promovem e monitoram o desenvolvimento inclusivo e sustentável no Brasil.

Pela Lei 12.587/2012, conhecida como Lei da Mobilidade Urbana, todos as cidades com população acima de 20 mil habitantes ficaram obrigadas a elaborar e apresentar um plano, priorizando o modo de transporte não motorizado e os serviços de transporte público coletivo. A ideia era incentivar a criação de modalidades alternativas de deslocamento, que resultassem em mais economia do tempo e do dinheiro gastos na circulação das pessoas e, também, numa redução de formas de transporte agressivas à natureza. No total, 3.342 cidades necessitam elaborar o seu PlanMob ou Plano de Mobilidade Urbana (PMU), abarcando 60% das cidades brasileiras.

A legislação determinou ainda que, quem não cumprisse a obrigatoriedade, como pena ficaria  impedido de receber verbas federais, específicas de mobilidade. E ainda obrigou a União a prestar assistência técnica aos entes federados e contribuir para a capacitação de pessoas para atender a esta política pública.

O Relatório Luz da Agenda 2030, que está em sua terceira edição, analisa a implementação dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) no Brasil a partir de dados oficiais e apresenta recomendações para que sejam alcançados. De maneira geral, o cenário encontrado é de violações e desrespeito aos direitos sociais, ambientais e econômicos, que vem se acentuando desde 2018. Ao mesmo tempo em que crescem a pobreza, o desemprego e a violência contra a mulher no país, são reduzidos os recursos para áreas como saúde e educação e nega-se o processo de mudança climática, entre tantos outros problemas que impedem que o Brasil atinja os ODS.

“Há todo um desmantelamento no sentido do planejamento. A não entrega dos planos de mobilidade, a não modelagem para mitigação das mudanças climáticas, o Plano Nacional de Habitação que não vai ser revisto e o próprio fim do Ministério das Cidades, que retira o protagonismo do olhar para as cidades, são alguns exemplos”, classificou Vitor Mihessen, coordenador de informação da Casa Fluminense, uma das organizações que compõem o GT Agenda 2030.

Desta vez, as análises do Relatório ganharam ainda mais importância, visto que o Brasil foi um dos 47 entes nacionais que haviam se comprometido a mostrar suas políticas nos setores social e ambiental durante o Fórum Político de Alto Nível (High-Level Political Forum – HLPF 2019), ocorrido em julho em Nova York, mas o governo federal desistiu de apresentar sua Revisão Nacional Voluntária. Como o HLPF é a mais alta instância das Nações Unidas para o monitoramento da Agenda 2030, o Relatório Luz 2019 tornou-se, então, a principal fonte de avaliação sobre os avanços e desafios do país, frente à agenda global de sustentabilidade no último ano.

Nele, o tema da mobilidade é tratado na análise do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 11 (Cidades e Comunidades Sustentáveis), que tem como princípio geral: tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis. A preocupação do ODS 11 parte da previsão de que daqui a 11 anos vamos ter 41 megalópoles com mais de 10 milhões de habitantes no mundo. No Brasil a organização socioespacial urbana abriga, hoje, 84,4% da população e o percentual pode chegar a 90% até 2030, de acordo com o ONU-Habitat (Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos).

O Relatório Luz mostra que, em nosso país “o desenvolvimento das cidades e as políticas a isso relacionadas – de habitação, saneamento, mobilidade, resiliência, e outras que dependem amplamente do investimento público – vêm sendo seriamente abaladas por uma série de medidas do novo governo que colocam em risco o alcance das metas estabelecidas na Agenda 2030”. Entre elas, a Emenda Constitucional nº 95/2016 e a reforma administrativa estabelecida pela Medida Provisória nº 870/2019. A Medida extinguiu o Ministério das Cidades e transferiu suas funções ao Ministério do Desenvolvimento Regional, diminuindo a relevância do tema das cidades na agenda político-institucional do país. O contexto político atual ignora a crescente taxa de urbanização brasileira e a tendência mundial de pensar e governar as cidades de maneira integrada.

Mais números negativos

Os Planos de Desenvolvimento Urbano Integrado (PDUIs), deveres criados para regiões metropolitanas pelo Estatuto da Metrópole (Lei Federal nº 13.089/2015), que também deveriam ter sido elaborados até janeiro de 2018, tiveram prazo adiado para dezembro de 2021. Com isso, a consecução da Meta 11.3 da Agenda 2030 ficou comprometida.

A meta do Plano Nacional de Saneamento (PlanSab), de universalização dos serviços de água e esgoto até o ano de 2033, já foi declarada impossível em 2017, e o setor segue em disputa regulatória, entre municípios, estados, regiões metropolitanas, e sob pressão do mercado para a realização de chamadas públicas para licitar as renovações de concessão (ainda de titularidade municipal).

O déficit habitacional brasileiro cresceu 3,1% entre os anos de 2016 e 2017. Uma das principais causas foi a redução da renda das famílias nos últimos anos e o consequente aumento relativo do gasto com aluguel (famílias comprometem mais de 30% da renda mensal com o pagamento da moradia). Esse cenário ameaça o alcance da Meta 11.1.

Sobre os transportes seguros, referenciados na Meta 11.2, o país ocupa a terceira posição entre nações com mais mortes no trânsito, ficando atrás apenas da Índia e da China. Segundo relatório da ONU, foram mais de 37 mil mortes em 2016.

A Meta 11.b diz respeito à adoção de planos e políticas para aumentar a eficiência no uso dos recursos e da resiliência a desastres naturais. Apesar da redução do nível de investimento estatal, houve um aumento da proporção de governos locais que adotaram políticas de redução de risco de desastres: de 23,1% de municípios em 2013 para 33,8% em 2017.

No capítulo dedicado ao ODS 11, o Relatório Luz aponta ainda que aspectos como a inviabilização da Lei de Acesso à Informação (LAI), os contingenciamentos dos orçamentos das universidades públicas e as possibilidades de corte no questionário do Censo 2020, apontam para um quadro de desmantelamento da produção de indicadores que permitam a elaboração e efetivação de políticas públicas diretamente voltadas à vida de pessoas que vivem nos espaços urbanos em situações socialmente desfavoráveis – em condição de pobreza, pessoas negras, mulheres, população LGBTI+, pessoas com deficiência e outras.

Mulheres e as cidades

O acesso universal a espaços públicos seguros é uma demanda de todas as pessoas, e particularmente das mulheres. A ausência de estatísticas sobre acesso a espaços públicos, convivência e circulação é um dos desafios em relação à Meta 11.7. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e dados do DataFolha de 2019, as mulheres são o público mais vulnerável ao assédio e ao constrangimento nos espaços públicos: 32,1% delas já ouviram comentários desrespeitosos quando estavam andando na rua, e 11,8% já foram assediadas fisicamente em transporte público ou privado (aplicativos on-line). Tal cenário também dialoga com a Meta 11.2, sendo as mulheres negras as mais atingidas pela violência. Quando perguntadas, 27,7% das mulheres negras afirmaram ter sofrido violência nos últimos 12 meses, contra 24% das mulheres brancas.

Recomendação prática

Embora façam um levantamento dos problemas enfrentados que dificultam a concretização da Agenda 2030, os especialistas responsáveis pelo Relatório Luz também indicam caminhos que precisam ser seguidos para mudar o curso e promover a adequação do país.

No tocante à temática da cidade e a necessidade de torná-las sustentáveis, resilientes, seguras e inclusivas, algumas das recomendações são: retomar os subsídios para a faixa 1 do programa Minha Casa Minha Vida e de prazos e sanções para o Estatuto da Metrópole, bem como a destinação de recursos para a elaboração dos PDUIs;  mitigar riscos e promover a adaptação às mudanças climáticas, considerando os impactos diferenciados que eles têm sobre diferentes grupos, observando-se  as questões de gênero, raça e etnia; fortalecer o Sistema Nacional de Informações Sobre a Gestão dos Resíduos Sólidos (SINIR) como fonte de dados oficiais de reciclagem no Brasil; atribuir ao setor privado responsabilidade sobre materiais recicláveis destinados incorretamente (a aterros, lixões, rios e mares); não incentivar a queima de plásticos em processos de gaseificação, pirólise, fornos de cimento, combustíveis derivados de resíduos ou outras instalações que, ao destruir materiais passíveis de retorno à cadeia produtiva, esgotam recursos naturais e aceleram as mudanças climáticas; instituir, por lei, a Política Nacional de Combate ao Desperdício e à Perda de Alimentos, incorporando uma ordem de prioridade – não geração, redução, reutilização, e tratamento por compostagem ou biodigestão – e considerando o desperdício por parte dos consumidores finais, pois grande parte dos resíduos destinados aos aterros ainda é de orgânicos; fornecer ao consumidor informações relevantes sobre os produtos consumidos – sua pegada hídrica, pegada de carbono, quantidade de agrotóxico presente/usado, presença de transgênicos em sua composição; entre outros.

Sobre a Agenda 2030 – A Agenda 2030 é um plano de ação global ratificado em 2015 na ONU por 193 países – inclusive o Brasil – para promover o bem-estar geral da população mundial e do planeta até o ano de 2030. O plano estabelece compromissos para governos, iniciativa privada e sociedade por meio de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), sucessores dos Objetivos do Milênio (ODM).

Sobre o GT Agenda 2030 – O grupo foi formalizado em setembro de 2014 e incide sobre o Estado brasileiro e as organizações multilaterais, promovendo o desenvolvimento sustentável, o combate às desigualdades e às injustiças e o fortalecimento de direitos universais, indivisíveis e interdependentes, com base no pleno envolvimento da sociedade civil em todos os espaços de tomada de decisão.

Acesse aqui o Relatório Luz 2019 completo.

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