Representações e realidades sobre a Agenda 2030: analisando criticamente o ODS 1, por Thiago Gehre e Yara Resende

Artigo publicado originalmente na Revista Mundorama – Divulgação Científica em Relações Internacionais

Nas Relações Internacionais um dos níveis de análise mais relevantes para o entendimento da realidade tem sido o da definição de agendas (agenda-setting). As agendas globais são fruto de um intenso jogo de interesses governamentais e não governamentais que conjugam problemas, soluções, participantes e oportunidades. E foi durante um destes processos, entre 2012 (RIO+20) e 2015 (Lançamento oficial da Agenda 2030), que os grupos de trabalho especializados na definição dos 17 objetivos e 169 metas, empregaram alguma tática – um jogo de representações – para “esconder” ou mesmo “bloquear” sentidos e prioridades que pudessem inviabilizar a adoção da Agenda 2030 pela ampla maioria dos países que integram o sistema multilateral das Nações Unidas (CAPELLA 2016; JUTTA 2007).

Um dos focos dos estudos sobre a Agenda 2030 está relacionado a temas como Gênero, Raça e Sexualidades – e sua interseccionalidade – que não tem a devida representatividade na agenda, bem como os sentidos expressos e ocultos que o documento base transmite ou comunica para a audiência global, de líderes políticos preocupados com o lugar do Sul Global neste arranjo, às jovens e meninas em situação de vulnerabilidade que não encontram eco nas metas estabelecidas globalmente.

Neste escopo, encontra-se justamente a temática da pobreza que continua assombrando as realidades nacionais no século 21. Especificamente, o ODS 1. Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares reflete ao mesmo tempo uma incomoda persistência de um problema e a incapacidade civilizacional de propor uma solução definitiva, ainda que se viva nos tempos atuais níveis de prosperidade nunca antes visto na história da humanidade (HARARI 2018; PINKER 2018)

Por ser um dos temas mais complexos e longevos da vida internacional foi reconhecido pela Agenda 2030 como o seu objetivo número um (ODS 1), sendo caracterizada a “erradicação da pobreza em todas suas formas e dimensões, incluindo a pobreza extrema, como “o maior desafio global” e, portanto, “requisito indispensável para o desenvolvimento sustentável”. O sentimento de positividade que parece nortear a Agenda 2030 e os ODS na medida em que “busca fortalecer a paz universal com mais liberdade”, contrasta com a realidade vivida em muitos lugares do planeta.

O argumento principal deste artigo é que um discurso intencionalmente construído e desenhado como um documento de referência para toda a comunidade global, como a Agenda 2030, influencia não apenas os tomadores de decisão e a formulação de políticas públicas ao redor do mundo, mas tem grande impacto na qualidade desta implementação (formatos, métodos, para quem estão sendo dirigidas, a serviço de quem serão realizados, e quem não será contemplado).

Para tanto, metodologicamente se trilhou o seguinte percurso: 1) Avaliação crítica da literatura especializada de relações internacionais, sobre aspectos teóricos e conceituais de pobreza e desenvolvimento; 2) Utilização de ferramenta técnica (Software NVivo 11 – QRS, 2015) que otimizasse a quantidade de dados analisados, auxiliando na sua organização mental; 3) Análise Crítica do Discurso, de cada parágrafo que compõe a Agenda 2030, sendo minuciosamente estudado para se identificar os seguintes aspectos: a) diferentes formas de menção à questão da pobreza; e b) avaliação sobre as intencionalidades dessa representação.

O propósito fundamental foi o de mapear as intencionalidades visíveis e escondidas pela “representação da pobreza”. A partir dessa análise crítica e da formulação de tais inferências descritivas, foram supostas algumas intencionalidades do discurso dentro do texto. Essas intencionalidades foram, por fim, postas à prova numa análise do alcance da implementação dos ODS, pela análise dos Cadernos ODS lançados pelo IPEA.

Concepções sobre Pobreza nas RI

O conceito de pobreza é de fato um dos mais complexos por envolver diversos fatores e dimensões. Pode-se falar em pobreza absoluta (quando o cálculo é individual) ou relativa (quando o cálculo é realizado em comparação com uma média de um grupo de pessoas), sendo a conceituação mais comum da pobreza relacionada estritamente à insuficiência de renda.

Algumas definições de pobreza são vinculadas a um conjunto pré-definido de necessidades básicas gerando um valor base (linha de pobreza) de medição. Por exemplo, a linha de pobreza proposta pelo Banco Mundial: de rendimento de até US$ 5,5 por dia (cerca de R$ 406 por mês) para definir a população de pobres e R$ 140,00/ mês em extrema pobreza, foi adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE) para averiguar a realidade brasileira, que alcançou a cifra de 70 milhões de pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza em 2019. Sendo que algumas regiões estão claramente em situação de vulnerabilidade, como os municípios amazônicos.[1]

Outras categorizam pobreza como fenômeno multidimensional, sendo a mensuração fruto de uma série de múltiplos fatores e variáveis sociais além da renda. Nesse contexto, novos indicadores sintéticos da pobreza são desenvolvidos: índices qualitativos, com maneiras mais humanas e menos estatísticas de mensurar como o Índice de Carências Básicas (IBC) que abarca os fatores educação; trabalho; habitação e renda; e o Índice de Exclusão Social (IES) que sintetiza características das famílias pobres do Brasil (SOARES, 2003; LIM, 2014

A multidimensionalidade advém das diversas interseccionalidades essenciais para construir um referencial de pobreza, tais como as questões etária, acesso ao ensino, emprego, moradia, trabalho, tempo, gênero, raça, dentre outras. Neste sentido, destaque para a proposta da ONU, o MPI (multidimensional poverty index) que é composto por três dimensões – saúde, educação e padrões de vida – e dividido em dez indicadores específicos – nutrição, mortalidade infantil, escolaridade, matrícula escolar e seis indicadores de padrões de vida. Por fim, alguns nexos relevantes precisam ser citados, tais como a conexão da pobreza com globalização, desigualdades e crescimento econômico por terem impacto direto naquele fenômeno (LIM, 2014).

Representações da pobreza na Agenda 2030

A primeira camada de representação da pobreza na Agenda 2030 advém da leitura da menção ou não-menção à temática nos diferentes ODS. Ao todo, são 24 menções no texto da Agenda que não compõe a definição explícita das metas e 13 menções no texto que compõe os objetivos, assim distribuídas:

Imagem 1 – Menções à questão da pobreza nos ODS

A primeira camada de representações oculta o fato de estarmos tratando de um conceito multidimensional da pobreza, além de excluir, dos processos de implementação e acompanhamento da Agenda, as próprias populações vulnerabilizadas que se mencionam, como as pessoas em situação de pobreza.

A segunda camada de representações refere-se à vinculação da pobreza diretamente ao crescimento econômico, retrato do perfil da ordem internacional pós-2ª Guerra Mundial que permanece dirigida por este “embedded liberalism” (RUGGIE 2003). A Agenda 2030 é permeada de traços e evidências de uma visão liberal e as soluções propostas para a erradicação da pobreza se reduzem à solução de uma pobreza econômica, mostrando certa contrariedade ao reconhecimento das múltiplas dimensões da pobreza (LIM 2014).

Ainda na segunda camada, depreende-se – pelo uso da ACD – que desenvolvimento, comércio e crescimento são termos de destaque, o que remonta ao poder de expansão do liberalismo, do capitalismo e da globalização em detrimento das preocupações sociais. Igualmente, a ênfase no princípio da soberania, mantém um caráter recomendatório da Agenda que não pode garantir a implementação de suas metas, tornando perigosamente flexível o impulso para real alcance das metas propostas.

A terceira camada de representação trata justamente da localização ou seja da comparação entre discurso e realidade. Por meio da análise dos relatórios do IPEA “Cadernos ODS” fica claro que o Brasil não avança positivamente em direção a erradicação da pobreza (2019; pág. 9). Os cadernos também chamam a atenção para as persistências das desigualdades quando se trata de pobreza no Brasil (regional, racial, etária), realçando a conexão desigualdade-pobreza.

Considerações Finais

De maneira geral, as considerações finais de nosso trabalho, no tangente à representação da pobreza, são sintetizadas nos pontos: 1. A representação da pobreza na Agenda 2030 reconhece algumas de suas múltiplas dimensões, com foco especial na interseção com educação, saúde, alimentação e gênero, apesar de ainda perpetuar uma visão da pobreza puramente econômica; 2. Os meios de implementação propostos, contraditoriamente à representação que reconhece múltiplas dimensões, se reduzem à erradicação de uma pobreza somente econômica, de uma perspectiva do crescimento econômico, liberalização dos mercados e práticas liberais; 3. As pessoas vulneráveis e pobres são mencionadas por diversas vezes ao longo do texto e tem reconhecimento central, mas são sempre apontadas como uma questão a ser resolvida, e não há evidencias de que tenham sido convidadas a construir em conjunto as proposições e metas da Agenda (e, nesse sentido, é importante destacar a centralidade da participação do público-alvo na construção de políticas, especialmente quando se tratam de pessoas vulnerabulizadas), não sendo colocadas como implementadoras do desenvolvimento sustentável ou acompanhadoras de sua implementação. Apreende-se que não estão incluídas no sujeito “nós” que propõe a construção do texto e concretização de suas metas, colocadas como um impasse ao desenvolvimento, que deve ser solucionado.

Podemos refletir, especialmente no contexto de um documento capaz de influenciar tomadores de decisão e a construção de políticas públicas ao redor do mundo, que a Agenda 2030 se propõe positiva em âmbito global, tendo especial relevância por ser construída no âmbito de uma organização como a ONU, que pauta a necessidade de garantia dos direitos humanos e que preza pelo respeito à todos os indivíduos e a erradicação da desigualdade entre tais. Entretanto, reflete uma perspectiva de manutenção do status quo, em alguns aspectos, e trilha um caminho de desenvolvimento ou “progresso” muito específico e linear, que serve mais a alguns que a outros (e que pode acabar por não alcançar, de fato, a erradicação das desigualdades). Seria possível dizer que o “tripé” do desenvolvimento sustentável está desregulado, tendo a perspectiva econômica quase sempre colocada em primazia com relação ao social e ao ambiental, especialmente na especificação dos meios de implementação e de acompanhamento.

Por fim, apreendemos a discordância entre a representação da pobreza a ser combatida e as práticas em políticas pública, sendo que no Brasil os níveis de pobreza continuam elevados e subindo nos últimos anos. Não basta superar a pobreza econômica com medidas de pretensa austeridade e reequilíbrio fiscal se continuarmos retroagindo em todos os quesitos que marcam a tridimensionalidade da pobreza e desigualdades no Brasil.

Referências Bibliográficas

ESCOBAR, A. “Encountering Development: The Making and Unmaking of the Third World”, Arturo Escobar. Princeton University Press. 2014.

HARARI, Yuval. 21 Lessons for the 21st century. Jonathan Cape, London, 2018.

IPEA. Cadernos ODS: ODS 1: acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares. Cadernos ODS, Brasília, p. 1-38. 2019.

LIM, Timothy C.. International Political Economy: An Introduction to Approaches, Regimes, and Issues. 1. ed. [S.l.]: Saylor Foundation’s Open Textbook Challenge, p. 1-448. 2014.

ONU. Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável: Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil (UNIC Rio), Brasil, v. 1, n. 1, p. 1-49, out./2015.

ONU BR: NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL. Secretário-geral da ONU lança panorama dos objetivos do milênio e da agenda de desenvolvimento pós-2015. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/secretario-geral-da-onu-lanca-panorama-dos-objetivos-do-milenio-e-da-agenda-de-desenvolvimento-pos-2015/&gt;. Acesso em: 04 jul. 2018.

QRS INTERNATIONAL. NVivo 11 Pro for Windows, 2015.

RESENDE, V. D. M.; RAMALHO, V. Análise do Discurso Crítica. 2a. ed. São Paulo: Contexto, 2011.

PINKER, Steven. Enlightenment Now: The Case for Reason Science Humanism and Progress. Viking, NY, 2018.

SOARES, Laura. O desastre social: os porquês da desordem mundial. 1. ed. Rio de Janeiro: Distribuidora Record, 2003. p. 1-118.

UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME. Human Development Repport 2016: human development for everyone. United Nations Development Programme. New York, p. 286. 2016. (0969-4501).

Sobre os autores

Yara Resende M. Martinelli, pesquisadora junior do Programa UnB2030 (yararmmartinelli@gmail.com);

Thiago Gehre Galvão, professor do Instituto de Relações Internacionais da UnB (gehre.unb@gmail.com).

Como citar este artigo

Cite this article as: Thiago Gehre, “Representações e realidades sobre a Agenda 2030: analisando criticamente o ODS 1, por Thiago Gehre & Yara Resende,” in Revista Mundorama, 30/09/2019, https://mundorama.net/2019/09/30/representacoes-e-realidades-sobre-a-agenda-2030-analisando-criticamente-o-ods-1-por-thiago-gehre-yara-resende/.

  1. Para informações atuais ver: https://www.atlasodsamazonas.ufam.edu.br/; https://www.portaldoholanda.com.br/noticia-hoje/quatro-municipios-do-amazonas-estao-na-faixa-de-extrema-pobreza-diz-atlas-ods; https://www.cut.org.br/noticias/70-milhoes-de-brasileiros-sao-pobres-ou-extremamente-pobres-80ca; https://www.institutonetclaroembratel.org.br/cidadania/nossas-novidades/noticias/numero-de-pessoas-vivendo-com-r-406-reaismes-cresce-2-milhoes-em-um-ano/

Leia aqui a publicação original deste artigo.

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