A era do contrassenso que ronda a política

Artigo de Claudio Fernandes, economista, assessor de Políticas da Gestos e membro cofundador do GT da Sociedade Civil para Agenda 2030, publicado no Jornal do Brasil, edição de 1º de fevereiro de 2019

CLAUDIO FERNANDES*

Há um contrassenso rondando os corredores do poder em Brasília, mas também em outros  estados, cidades e países: o espectro do Estado como provedor de benefícios aos mercados, ao invés de responsável regulador do bem-estar da nação para seus cidadãos e cidadãs.

O Distrito Federal, apesar de ter reduzido seu débito fiscal de 1,6 bilhão de reais, em 2014, para 600 milhões, no final de 2018, ainda está distante de se tornar superavitário. Ou seja, o governo recém empossado, do “liberal” do MDB, Ibaneis Rocha, um advogado neófito em administração pública, precisará trabalhar muito para conseguir solucionar os problemas e ter espaço para emplacar políticas de desenvolvimento sustentável que alavanque a economia do estado com maior renda per capita do país.

Em 10 de janeiro, o Diário Oficial do DF anunciou uma redução de alíquota do ICMS de 35% para 29% para três setores da economia. Uma redução de quase um quinto no valor do imposto está contido na Lei 6.253/2019, sancionada pelo governador, para entrar em vigor em 1º de fevereiro. Quando uma medida assim é tomada por governos, a razão motivadora é que tal política incentive aquele setor econômico, impulsionando mais negócios e, em médio prazo, aumente a arrecadação através do estímulo à economia em geral, pois geraria mais empregos e o efeito multiplicador do mercado geraria mais receita.

Essa redução de ICMS é surpreendente pois os setores da economia a se beneficiar com a medida são os de bebidas alcoólicas e não alcoólicas (refrigerantes etc), e o de tabaco e seus derivados. Três setores altamente concentrados em oligopólios e automatizados, reduzindo o impacto positivo que haveria sobre o emprego.

A Organização Mundial da Saúde, o Banco Mundial, a Organização das Nações Unidas, a Conferência Internacional do Financiamento para o Desenvolvimento, e o Instituto Nacional do Câncer (Inca), do Ministério da Saúde, reconhecem e admitem os terríveis males causados pelos produtos beneficiados por essa decisão final do governo do DF. Esses produtos colaboram para o inevitável crescimento das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), e não há porquê empresas que os fabricam serem beneficiadas com o uso de recursos públicos. Ao contrário, a direção é que esses produtos devem ser tributados para que o consumo seja desestimulado.

No caso do tabaco, a política de aumento de preços e impostos instituída a partir de 2011, cumprindo o artigo 6º da Convenção Quadro para o Controle do Tabaco, da OMS, foi uma das medidas que mais contribuíram para a queda na prevalência do tabagismo no país – de 15,7%, em 2006, para os atuais 10,1% entre adultos (Ministério da Saúde/Vigitel, 2017) . Estudos da OMS e do Banco Mundial apontam o aumento de tributos como a ação mais efetiva para reduzir o tabagismo, pois ao reduzir a acessibilidade econômica ao cigarro, incentiva fumantes a deixarem de fumar e inibe a iniciação de crianças e adolescentes no tabagismo.

O alcoolismo, a obesidade e o tabagismo são os fatores de risco responsáveis principais por várias DCNT, como o diabetes tipo II, doenças cardiovasculares, a cirrose hepática e os enfisemas pulmonares, além do que aumentam em muito a possibilidade de desenvolvimento de vários tipos de câncer (boca, pulmão, esôfago, pâncreas), ocasionando morbidade e mortalidade prematuras.

A sociedade do Distrito Federal se depara com uma decisão que contradiz todas as diretrizes dos organismos internacionais e nacionais: para aumentar a receita tributária, os preços devem ser reduzidos para estimular a demanda. Ou seja, o Estado está investindo em setores não sustentáveis do ponto de vista da saúde pública, contradizendo o bom senso da economia política voltada ao desenvolvimento sustentável e ao futuro das pessoas e do planeta. Estejamos então cientes de que, num futuro próximo, como acontece nos dilemas faustianos, a conta vai chegar.

* Economista, consultor da ACT Promoção da Saúde e membro do GT da sociedade civil para a Agenda 2030 do desenvolvimento sustentável (GTSC A2030)

Acesse o texto original aqui.

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