Água potável e saneamento ainda não é para todos e todas no Brasil

Relatório Luz 2018 aponta que no atual o ritmo de investimento só em 2054 Brasil terá acesso universal
No Brasil, 34 milhões de pessoas que não têm acesso à água tratada e mais de 100 milhões estão excluídas do serviço de coleta de esgoto em seus domicílios, realidade com impacto direto na qualidade de vida e a saúde da população. Uma das rotas para assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas as pessoas é garantir a participação social efetiva em todos os níveis de tomada de decisão sobre recursos hídricos e saneamento – com atenção à inclusão de comunidades tradicionais ou em vulnerabilidade social. É o que aponta o Relatório Luz 2018, documento elaborado pelo Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para Agenda 2030 (GTSC Agenda 2030) sobre o avanço da implementação dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS).
A Agenda 2030 funciona como um mapa colaborativo para a busca pelo desenvolvimento sustentável. Os 17 ODS traduzem as necessidades das pessoas e do planeta em várias dimensões. Sobre o ODS 6: Água potável e saneamento, o Relatório Luz 2018 também destaca que o Estado brasileiro trabalha com o conceito de “áreas atendíveis”, concentradas nas zonas urbanas, e deixa de fora áreas afastadas, zonas rurais, assentamentos precários, ocupações irregulares e favelas, que sequer são consideradas no longínquo horizonte de universalização.
O Relatório Luz 2018 mostra que os índices brasileiros de atendimento de água e esgoto estão estagnados ou pioraram na última década: de 58,1%, em 2006 para 57% em 2016. Se o país mantiver o nível de investimento atual, somente em 2054 alcançará o acesso universal.
O direito de acesso à água potável e ao saneamento adequado é essencial para a vida humana digna é reconhecido como direito de todas as pessoas. Estes direitos devem ser garantidos de maneira universal e segura, especialmente aos grupos em situação de alta vulnerabilidade social. Mas esta não é a realidade do Brasil, como indica a análise deste ODS.
Relatório Luz 2018 | ODS 6: Água potável e saneamento
O tratamento de esgoto, embora tenha evoluído nos últimos dezoito anos, atingiu em 2016 o índice de apenas 44,9% em relação ao total gerado no país. A piora no serviço, essencial, de abastecimento de água potável resultou na redução da população atendida de 93,3%, em 1995, para 83,3%, em 2016. Há também grande diferença regional em termos de acesso, com atendimento melhor no Sudeste e pior no Norte do País.
O Relatório Luz 2018 mostra que o Estado brasileiro tem historicamente se omitido de sua responsabilidade indelegável no saneamento. Há investimento cada vez menor no setor, mesmo retirando largas quantias via tributos. Portanto, apesar da meta dos ODS de universalização do saneamento até 2030 estar alinhada à meta do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), o cenário é de desafios.
O Atlas do Esgoto (2017), da Agência Nacional das Águas, ANA, informa que mais de 110 mil km de rios estão poluídos por terem contato direto com esgotos. Mas as agências reguladoras do serviço de saneamento, no geral, tampouco colaboram para a melhoria da qualidade das águas, uma vez que seus instrumentos normativos e econômicos não induzem as empresas de saneamento a investir em coleta e tratamento de esgoto, mas sim a sempre buscar novas fontes de água. Tal situação reflete a deturpação no Brasil sobre o conceito de segurança hídrica, divulgado pelas autoridades como a necessidade de se aumentar a oferta de água (desconsiderando os demais aspectos, como por exemplo a qualidade da água).
Outro instrumento normativo que necessita ser aprimorado é a outorga de direito de uso de recursos hídricos, que pouco versa sobre ações para melhorar ou preservar a qualidade das águas. São poucas e incipientes as iniciativas decorrentes de políticas públicas para fomentar o reuso de águas residuárias como parte de estratégia e instrumentos de saneamento ambiental e gestão sustentável de águas. A escassez hídrica em algumas regiões do país proporcionou algumas oportunidades para iniciativas isoladas, por corporações diversas (indústrias, estabelecimentos comerciais e condomínios residenciais) para reuso de águas pluviais, mas ainda há que se avançar na promoção do reuso seguro de águas residuárias domésticas, industriais e agrícolas.
Sobre a eficiência no uso da água ainda há muito o que se fazer. Poucas ações foram implementadas, como por exemplo o premiado Programa Cisternas do Governo Federal, atualmente sob ameaça. Em abril de 2018 o Senado Federal aprovou o PLS 51/2015 que permite o fornecimento de água potável por fontes alternativas, tais como reuso, água de chuva e águas residuais, passo importante mas que carece de concretude e regulação, outro exemplo das poucas medidas que avançaram.
Uma demanda importante é fortalecer a governança e o monitoramento da Política Nacional de Irrigação (o setor é o principal usuário de água no país), incluindo instrumentos de indução às novas tecnologias que permitam o uso racional, como por exemplo o gotejamento.
Para implementar a gestão integrada dos recursos hídricos em todos os níveis, são necessários mais estudos e análises que indiquem as perdas econômicas para os diferentes setores usuários em decorrência da falta de água causada pela desproteção dos ecossistemas aquáticos, destacando a fundamental relação entre a meta do acesso à água e o desenvolvimento econômico.
O importante papel dos ecossistemas no ciclo da água ainda é, em geral, menosprezado no Brasil. A escassez hídrica sem precedentes que atinge o país não se deve apenas a eventos extremos ou variações de curto prazo em torno de uma média supostamente constante, mas também ao desmatamento para plantar pastagens e monoculturas no norte e centro do Brasil.
Relatório Luz 2018 | ODS 6: Água potável e saneamento
Da mesma maneira, os ecossistemas também dependem da preservação das águas para sua manutenção: a água em quantidade e qualidade é um dos pilares para a proteção das vidas humanas e da vida como um todo. As chuvas também se tornam mais torrenciais por causa do aquecimento local decorrente do desmatamento e da urbanização, aumentando o escoamento e as enchentes. É importante garantir a permanência das estruturas e da legislação ambiental favoráveis à proteção desses ecossistemas, muitas das quais estiveram e seguem em risco no contexto político atual, como é o caso dos projetos de lei que visam alterar os procedimentos do licenciamento ambiental, com o intuito de torná-los mais flexíveis (o que seria uma potencial ameaça aos ecossistemas).
Não há dados sistematizados sobre os mecanismos de participação e consulta sobre o uso de recursos hídricos que estão sendo aplicados nem quantas são as comunidades beneficiadas por eles. Igualmente, não há dados sistematizados sobre a representação dessas comunidades em comitês de Bacia e noutros fóruns decisórios pelo País.
Recomendações
- Garantir a participação social efetiva em todos os níveis de tomada de decisão sobre recursos hídricos e saneamento, com atenção à inclusão de comunidades tradicionais ou em vulnerabilidade social, estabelecendo e implementado estratégia para a universalizar o acesso à água e aos serviços de saneamento.
- Garantir a transparência em todas as instâncias da gestão pública dos recursos hídricos e saneamento, incluindo nos comitês de Bacias, órgãos estaduais e empresas com outorga de serviços.
- Preservar a vegetação existente e restaurar ecossistemas a fim de proteger as águas do País. Nesse sentido, manter e aprimorar os mecanismos de proteção a ecossistemas e impedir os retrocessos em matéria ambiental que tramitam no Legislativo brasileiro (como a proposta de “flexibilização” do licenciamento ambiental e do uso de agrotóxicos).
- Incorporar o direito ao saneamento básico no artigo 5o da Constituição Federal.
- Promover estratégia nacional para o reuso e uso racional da água em todos os setores, agrícola, industrial, comercial, de serviços e residencial.
- Incorporar a água e saneamento na NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada) do Brasil.