Análise da Sociedade Civil Membro da Delegação Brasileira sobre o resultado da III Conferência FpD
Terminou no dia 16 de julho de 2015, quinta-feira passada, a III Conferência Internacional de Financiamento para o Desenvolvimento (FpD) em Addis Abeba, Etiópia, que reuniu Estados-membros das Nações Unidas, organismos internacionais de comércio e finanças, representantes da sociedade civil e do setor privado para acordar uma agenda programática de ação para o desenvolvimento e erradicação da pobreza.
Em primeiro lugar lamentamos que a Conferência não conseguiu atrair delegações com a presença de representantes governamentais de alto-nível – Presidentes, Primeiro-Ministros ou Ministros.
Em segundo, também lastimamos que a Agenda de Ação de Addis Ababa (AAAA) aprovada na III Conferência não reflete as demandas necessárias para o efetivo financiamento para o desenvolvimento de acordo com o mandato de sustentabilidade da Agenda Pós-2015, contrariando aspirações de países em desenvolvimento, bem como de organizações da sociedade civil envolvidas no processo. Durante os meses que antecederam a Conferência, foram construídas as bases da AAAA em um extenso processo de consultas envolvendo as partes interessadas – governos, sociedade civil, setor privado e academia. No entanto, a construção do texto-base ocorreu de maneira centralizada no secretariado da Conferência, o que foi enfraquecendo consistentemente os cinco rascunhos da proposta do documento que deveria ser negociado em Adis Abeba.
Considerando que a Conferência deveria ter sido um processo de negociação, no final refletiu um jogo de poder não-transparente, conduzido sem espaço de diálogo público multilateral entre todos os Estados, mas em reuniões bilaterais fechadas com representantes dos grandes grupos (UE, G77+China), cujo resultado reafirma a hegemonia dos países desenvolvidos, sobretudo os Estados Unidos, União Europeia, Japão, Canadá e Austrália, fortalecida pelas posições explícitas de representantes das instituições financeiras do acordo Bretton Woods (FMI e Banco Mundial) e da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD).
A resolução final indica vários retrocessos na arquitetura do financiamento para o desenvolvimento inaugurada com a primeira conferência em Monterrey (México, 2002) e confirmada em 2008 em Doha. Destacamos que a AAAA está principalmente centrada nos interesses do setor privado, considerado pelo documento como a possível principal fonte para o desenvolvimento por meio das questionáveis PPP (Parcerias Público-Privada) e dos financiamentos combinados. Além disso, há um foco excessivo na mobilização de recursos domésticos para o desenvolvimento nacional e no incremento da cooperação sul-sul e triangular, enquanto no que se refere à Ajuda Oficial para o Desenvolvimento (ADO) não ficou estabelecido nenhum compromisso com o alcance da meta de 0,7% do PIB dos países doadores.
Como avanços, destacamos a criação do mecanismo de facilitação em tecnologia para cooperação em desenvolvimento e a aprovação de um mecanismo de seguimento da Conferência FpD, que até então não existia. Também há um explícito esforço em valorizar o investimento em equidade de gênero e o empoderamento da mulher no processo econômico e social.
O principal ponto de conflito na III Conferência consistiu na ampliação do e reconfiguração do papel do Comitê de Peritos de Taxação da ONU para um Comitê Intergovernamental Ampliado, com membros indicados pelos Estados-membro, com o objetivo de facilitar a construção de uma arquitetura legal de cooperação tributária internacional. Apesar da insistente defesa desta proposta pelo G77+China no processo anterior à Conferência, essa questão, que nós da sociedade civil consideramos central para aumentar o nível de transparência financeira e reduzir o fluxo ilícito de capital, foi deliberadamente bloqueada pela oposição montada pelos países desenvolvidos com ajuda importante da Etiópia, que exerceu fortemente sua influência como país anfitrião.
Destacamos que pontos como a questão de benefícios fiscais para as empresas transnacionais alcançou um espaço na política internacional como jamais visto, graças à firme ação das organizações da sociedade civil e de alguns países do sul global. Elusão fiscal, verbas ilícitas, opacidade tributária dos “paraísos fiscais” e democratização da governança financeira para uma verdadeira justiça fiscal foram, e, esperamos, devem continuar sendo parte da agenda de eventos inter-governamentais.
Comemoramos os esforços articulados da sociedade civil global no monitoramento de todo processo de constituição da III Conferência, que foram fundamentais para a produção dos limitados avanços do texto bem como na diminuição dos retrocessos políticos e programáticos da agenda de ação do financiamento para o desenvolvimento.
Celebramos e reafirmamos a importância da incorporação de representantes da sociedade civil na delegação oficial brasileira como mecanismo de participação social, o que demonstra amadurecimento político-democrático, e que pode vir a ser um direito garantido para todas as esferas de processos de negociação multilateral, com canais de diálogo na esfera de relações exteriores e com um mecanismo de apoio financeiro para sua efetiva participação. Acreditamos também que, cada vez mais, devemos construir condições para que haja diversificação na delegação oficial do País, a fim de alcançar equilíbrio de gênero, etnia e demais aspectos da rica diversidade humana brasileira.
A partir da avaliação da construção política da III Conferência de Financiamento para o Desenvolvimento, e dos resultados finais traduzidos no AAAA, acreditamos que devemos seguir lutando para que o significado adequado ao acrônimo que se refere ao processo – FpD – seja realmente o Financiamento para o Desenvolvimento, não a ratificação do Financiamento para a Dependência.
Assinam,
Cláudio Fernandes (Gestos | ABONG | TTF Brasil), Jocélio Drumond (ISP), Manuella Donato (Coletivo Mangueiras), Richarlls Martins (REBRAPD), Rosane Bertotti (CUT/REBRIP)
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