crônica de um desastre anunciado

Relato sobre o seguimento da Conferência Internacional para o Desenvolvimento no VI Fórum FfD

Ambição em falta e o fato consumado

Nova York – Concluiu-se este ano, nos idos da metade de abril, antes do Fórum Político de Alto Nível, o sexto Fórum de Financiamento para o Desenvolvimento, iniciativa das Nações Unidas executada pelo Conselho Econômico Social (ECOSOC), presidido pelo até então ponderado Embaixador Munir Akram, do Paquistão, agora sob denúncia de violência contra uma mulher em um hotel em Nova York, em 2003. 

O final do fórum foi melancólico para um evento que começou quente e prometia apontar para algo extraordinário, já que o momento atual demanda grandes decisões. O excitamento inicial pela convocação do Secretário Geral da ONU, o português Antonio Guterres, para que os governos tivessem coragem e ambição foi desaparecendo ao longo dos quatro dias de exposições, debates e negociações governamentais, que adotaram um documento repleto de desejo contradito por uma retórica que esconde as formas de sua realização. Um oxímoro adotado em consenso por 192 países, com algumas ressalvas que mais revelam as posições dos governos atuais desses países. Além das costumeiras objeções sobre conceitos não definidos ou a falta de peso dado a certo assunto, como mulheres e meninas, como reclamado pelo Reino Unido, ou a pouca atenção dada aos países de renda média. Mas vamos aos detalhes da história desse evento que é um prenúncio de uma derrocada.

Se não agora, então quando?

O VI Fórum de Financiamento para o Desenvolvimento foi aberto no dia 12 de abril, segunda-feira, em um formato misto presencial e virtual, por um vídeo que mostrava as enormes necessidades atuais e as situações complicadas que se desenrolam no planeta. E a tônica marcante são os efeitos da emergência climática e a atual pandemia da Covid-19, com seus efeitos amplificados por toda sociedade, afetando as pessoas de diversas maneiras, com a morte rondando o destino da humanidade. No texto falado e escrito na tela, uma conclusão impactante: “para tempos sem precedentes, respostas sem precedentes”. A mensagem foi forte e nos faz refletir sobre a urgência do presente.

O primeiro discurso veio do primeiro-ministro do Paquistão, Imar Khan, recentemente envolvido em polêmica por ter criticado mulheres que se expõem em roupas curtas como motivador de estupro em seu país. Machismos à parte, ele discursou chamando o fórum a responder com deliberação crítica a “despencada socioeconômica” por causa da pandemia. Ecoou a demanda que a maioria dos países esperam, “restrições de transferência tecnológica para a produção da vacina devem ser suspensas”. E comentou, “no momento que mais precisam, as taxas de juros para empréstimos aos países mais pobres devem ser reduzidas”. Assunto que foi tratado em um dos painéis posteriores, mas sem muito efeito, pois de fato as taxas de juros para países desenvolvidos estão zeradas, enquanto países em desenvolvimento começam a ter que elevar taxa de juros para atrair capital necessário para responder à pandemia. E ele ainda provocou, “propriedades fruto de ativos roubados e desviado ilicitamente dos países devem ser retornados”, como medida contra a corrupção e o fluxo ilícito de capital.

Em seguida, o Secretário Geral elevou o tom da situação, “nada aconteceu como devia. A pandemia colocou o multilateralismo em teste e até o momento falhamos” diante da maior recessão econômica dos últimos noventa anos. “E esta crise ainda está muito longe de acabar”, avisou com bom senso diante da realidade. “Nacionalismo vacinal compromete a todos os países”. Recomendou cinco medidas para, se não solucionar, pelo menos mitigar a complexa situação:

Financiar a iniciativa COVAX (fundo à base de doações para aquisição de vacinas para os países mais vulneráveis que não tem recursos para pagar pelas vacinas);

Reverter a queda nos financiamentos concessionais (que não são empréstimos ou condicionados, mas doações);

Aplicar um tributo global sobre a riqueza extrema, já que esta cresceu 5 trilhões somente durante a pandemia;

Ampliar a suspensão das dívidas dos países; e

Revigorar a economia em consistência com o Acordo de Paris, “é necessária uma mudança no paradigma para alinhar o setor privado à Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável”.

E concluiu, “para isso precisamos pressionar o mais alto nível político”.

O Presidente da Assembleia Geral, Embaixador Volkan Boskir, da Turquia, focou na urgência e consequência de “anos de impactos sociais e econômicos dessa crise”. Mas mostrou a assimetria da situação, “dos 20 trilhões já mobilizados para responder aos efeitos da pandemia, somente 8.5 bilhões de dólares foram para os países mais necessitados”. Reforçou o pedido por ambição e arriscou, “precisamos de mais do que suspensão de pagamentos das dívidas públicas, precisamos de cancelamento das dívidas”, avisando apocalipticamente que “a única forma de nos salvarmos é se todos emergirem dessa pandemia ao mesmo tempo”, para tal é necessário “cidadania e solidariedade global para demonstrar a força do multilateralismo. Se não agora, então quando?”

Palavras fortes mas negócios de sempre

O que seguiu essa abertura foi uma repetição dos mesmos temas. Os países menos desenvolvidos cobrando dos países desenvolvidos o cumprimento de seus compromissos, renegociação das dívidas em termos mais compatíveis com a realidade, que é o real significado de “cancelem as dívidas”. Como bem explicou Clay Lowery, VP do Instituto para as Finanças Internacionais, debatedor no terceiro painel de debates, Fortalecendo credores privados e agências de análise de risco como contribuição à resposta à pandemia, “a natureza da dívida pública mudou. Hoje são instituições, fundos de pensão e investidores pulverizados que detém a maior parte delas, não alguns bancos, como era nos anos 1980”. A Argentina, por exemplo, teve suas negociações travadas há quatro anos por causa de fundos-abutres de dívida que detinham 9% de títulos inadimplentes e processou o país.

Algumas demandas palpáveis mas ignoradas, pelo menos por hora, é criar mecanismos vinculantes multilaterais para poder intervir efetivamente na política do ponto de vista global, o que será necessário em algum momento de um futuro não tão distante. Dentre esses mecanismos: uma “receita federal” planetária sob os auspícios da ONU, adotar um imposto mínimo sobre as corporações multinacionais em todo mundo, e criar uma agência de análise de risco pública multilateral para furar o oligopólio atual (as três dominantes Fitch, S&P, Moody’s, quatro menores e duas nacionais, do Japão e México). 

A Secretária Executiva da CEPAL, Alícia Bárcenas, inclusive acusou as Agências de Risco de preconceito com os países da América Latina e do Caribe, num painel com a presença da Presidente do Conselho Macroeconômico da Moody’s, Ellen Duggar, que rebateu, “nós analisamos aspectos fundamentais de capacidade de pagamento dos países, não temos ideologia e os critérios são transparentes”. Enquanto outro expositor jogava para a plateia virtual, “precisamos desmistificar a moratória soberana. É um instrumento legítimo de negociar dívidas que não pode pagar no momento, assim como a lei de falências faz para uma empresa.” Mas a consequência é que tais países são rebaixados pelas agências de risco, criando uma espiral descendente de endividamento sob a perspectiva institucional e creditícia.

O tema da tributação mínima global havia sido semente para intenso debate e resoluções na reunião conjunta do FMI e Banco Mundial, uma semana antes do Fórum FfD, que teve seu ápice no compromisso feito pela Secretária do Tesouro americano, Janet Yellen, de que os Estados Unidos apoiam a ideia do imposto mínimo corporativo entre 25% e 30%.

Na sessão especial com a presença do terceiro escalão do Banco Mundial, FMI e UNCTAD, já esgotados da última semana de eventos da Reunião de Primavera das Instituições Financeiras Internacionais, o ponto alto foi o Presidente do ECOSOC pedir que os técnicos e os países que os apoiam “tirem suas cabeças da areia, o setor privado não apareceu quando era preciso”, após de escutar o mantra de que o capital privado apareceria para consertar a bagunça. “O esforço deve ser público, sabemos disso. E o local de tomada de decisão é a ONU, não o G20 ou a OECD. Achar que não podemos alcançar muito aqui na ONU porque tem o Banco Mundial para fazer acontecer é uma miopia”.

A sociedade civil organizada e as verdades inconvenientes

Em evento sobre reconstruir a economia do futuro alinhada com os ODS e que seja resiliente ao clima, a sociedade civil demandava aumento na proteção social e suspensão das patentes das vacinas para uma resposta efetiva à pandemia. Enquanto os Estados Unidos, este ano pela primeira vez bastante vocal nesses seis anos de Fórum, com diversas intervenções afirmativas de alinhamento com a política ambiental após o negacionismo do governo anterior, prometia investimentos significativos para ações climáticas e esforços para alinhar todos os investimentos a soluções sustentáveis. Contudo, o destaque desta sessão ficou a cargo da representante do GT de Mulheres do Grupo da Sociedade Civil para o FfD. Tetet Nera-Lauron, do Fórum Ásia-Pacífico sobre Lei e Desenvolvimento, “precisamos prestar mais atenção ao trabalho não pago das mulheres, principalmente nessa pandemia”, tema pouco levantado nesta edição do Fórum. E ela continuou disparando verdades inconvenientes diante do marasmo das discussões até então, “o que o mundo precisa é de suspensão das patentes das vacinas, para que seja produzida em vários lugares ao mesmo tempo. A proposta da COVAX é um insulto dos países ricos à comunidade internacional. Emissões zero é o novo jargão para manter os ganhos das corporações. Precisamos é de transição para sistemas de produção mais verde, não esse ‘green washing’”. Este apelo foi acompanhado por palavras de apoio vindas da África do Sul, “os desafios são sistêmicos e amplos, mas não podemos esperar o capital privado vir para salvar o dia”.

Mesmo assim, foi ficando cada vez mais evidente a falta de ambição para que as instituições e países saíssem de suas zonas de conforto e privilégio histórico. Como bem sintetizou Alvion Mosioma, da Rede de Justiça Fiscal (TJN), “nós precisamos quebrar as resistências de quem mais se beneficia dos fluxos ilícitos de capital”.  A fala da representante Sabine Mauderer, do conselho do Bundesbank, BC da Alemanha, não deixa dúvidas, “eu sei que há uma demanda para que os bancos centrais sejam protagonistas, mas nosso mandato não inclui políticas climáticas ou políticas sociais, isto é mais um política para os bancos de desenvolvimento”. Ela não considerou o chamado efeito multiplicador das políticas monetárias como pertinente ao caso, contudo elevou o tamanho da tarefa à sua realidade macrofísica, “para problemas globais nós precisamos de soluções globais. Nós temos que medir dois tipos de riscos, o físico, considerando a direção que o mundo tem tomado, e o de transição na mudança de direção. Daí, o representante do Ministério da Fazenda da Finlândia,  complementou, “Banco Central e Ministério da Economia precisam colaborar na formulação de políticas econômicas sustentáveis”. A narrativa técnica mostra alguns caminhos que, se implementados, poderiam surtir efeitos positivos. O senhor Pekka Morén, representante também da Coalizão dos Ministérios da Fazenda para ações climáticas, chamou a atenção para a necessidade de macro-modelagem para que melhor se entenda os riscos das mudanças climáticas para a economia. Um trabalho apenas iniciado.

Coube à Paola Simonetti, da Confederação Internacional de Sindicatos Laborais (ITUC), a tarefa de despertar a audiência com mais algumas verdades inconvenientes, “vencer a pandemia significa acesso universal a tratamento, teste e vacina. Para tal é necessário que se remova os impedimentos legais de propriedade intelectual.” Esta demanda é fundamentalmente lógica para se alcançar o objetivo o mais rápido e efetivamente possível de terminar com a pandemia, mas as decisões multilaterais e nacionais, mais frequentemente do que desejado, não contém fundamentos lógicos. “Financiamento doméstico e internacional devem estar alinhados com os ODS, mas cuidado no uso dos Green Bonds”, títulos de dívida pública ou privada voltadas a projetos de infraestrutura física. 

Até o momento há 356 bilhões de dólares em circulação no mundo com o capital investido em diversas iniciativas em vários países com maior volume de recursos concentrados nos Estados Unidos (32.3b), Alemanha (21.4b) e França (17.8b) no último quarto de 2020, dentre elas um financiamento de 705 milhões de dólares, com prazo de 12 anos de maturação, para a FEMSA, subsidiária da Coca-Cola no México, para captação de energia renovável para suas operações. O problema da credibilidade de tal operação é o fato do bem final produzido por essa energia ser maléfico à saúde, o que reduz a efetividade no uso de tal mecanismo de financiamento como solução para a implementação dos três pilares de sustentabilidade.

Documento oficial negociado reitera falta de vontade

O documento oficial negociado pelos países ao longo do desenrolar do Fórum foi sendo diluído a cada nova iteração, resultado do fato de que a diplomacia busca acomodar todas visões sem constranger certos pares. Um jogo de Xadrez com muitas idas e vindas no tabuleiro. O consenso só foi alcançado por intervenção direta do Presidente do ECOSOC nas últimas horas de negociação antes do encerramento. E mesmo assim, certos pares se sentiram diretamente agredidos pelo fato de que o texto fazia referência ao Painel FACTI sobre fluxos ilícitos de capital, inclusive reclamando a validade do conceito (fluxo ilícito). O G77+China, representado pela Guiné, reclamou que o documento não fazia referência suficiente ao países de renda média, assim como discordam da inclusão do FATF (Força Tarefa para Ação Financeira), pois não é uma instituição constituída e reconhecida por alguns governos, que sentem discriminação em relação a países em desenvolvimento, como havia reclamado antes a delegação do Irã sobre a presença da FATF no Painel V, Provando o que fala ao lidar com fluxos ilícitos de capital: ações para atingir progresso tangível. O próprio título já mostrando fraqueza política diante do problema.

O Brasil, que não havia se manifestado durante todo o Fórum – no segundo dia pedira a palavra, mas o embaixador Ronaldo Costa não conseguiu conectar, resultando em silêncio e tela preta – finalmente fez uma declaração. Após longa deferência e agradecimentos às pessoas que mantém o processo FfD em movimento, a substância da fala foi uma reclamação por terem incluído “linguagem referente às mudanças climáticas. Nós não temos as ferramentas para usar linguagem climática”. Diante de todos os problemas reais que tornam o futuro cada vez mais catastrófico e permeado de distúrbios, as preocupações excessivas por detalhes técnicos falam muito sobre os interesses de quem os declara, e não deixa de causar incômodo pela ausência do espírito de cooperação multilateral que foi pedido pelo Secretário Geral em seu discurso de abertura.

Os Estados Unidos nos lembrou que todo o esforço de negociação do documento não tem força de lei. A resolução E-FFD-F-2021/L.1. aprovada com muita eloquência pelo Presidente do ECOSOC, Embaixador Munir Akram, não é vinculante, portanto os países as adota como achar melhor ou nem sequer precisam adotar se não quiserem.

Um emaranhado de contradições

A postura do representante da União Europeia sintetiza a contradição entre o que é preciso fazer e a dificuldade de executá-lo com mudanças que firam privilégios, “a União Europeia reconhece que todas as pessoas devem ter acesso às vacinas (contra a Covid-19). Imunização deve ser um bem público. Por isso que entendemos que a solução é através da COVAX”. O oxímoro está no fato de que COVAX é a confirmação de que a vacina é um bem privado e protegido, comprado a preços altos. Como explicitou o México, “COVAX apenas não é suficiente”.

E enquanto os Estados Unidos reclamava que “comércio não discriminatório”, contido no parágrafo 59, significava uma “crítica a sanções econômicas, algo que pode ser feito por qualquer país”, a Rússia apresentou a ideia de seu presidente, Vladimir Putin, para a “criação de corredores verdes onde não se aplicaria sanções econômicas”. Mas a palavra “verde” aí é contradita por “é direito do país selecionar suas soluções para combater as mudanças climáticas”.

Portanto não é de se admirar que a vice-Secretária Geral das Nações Unidas mostrava falta de entusiasmo em suas palavra de encerramento do Fórum. “Estamos saindo devagar da pandemia para um mundo mais desigual. As negociações aqui salientaram o problema alarmante que temos nas mãos,” reconhecendo que a ambição pedida na abertura do Fórum pelo Secretário Geral não foi alcançada, ou nem sequer tentada. “Estamos diante do vírus da desigualdade”, referia-se à falta de cooperação multilateral. “Os esforços são significantes, mas insuficientes, porque sabemos que precisamos de transformações estruturais para nos prevenir de futuras crises”. E ela elencou demandas históricas feitas pela sociedade civil: cancelamento e suspensão de dívidas, com um Fórum Global para resolução de disputas referentes a dívidas; Renda Básica Universal; educação pública; e acesso universal à saúde pública, “para que possamos garantir respostas aos desafios futuros, para além da Covid-19, como o clima, a fome e as desigualdades sociais”.

O embaixador Akram encerrou oficialmente o VI Fórum de Financiamento para o Desenvolvimento com palavras que criam uma imagem indesejada: “a recuperação do mundo precisa ser feita rapidamente, alinhada ao Acordo de Paris e à Agenda 2030, se não acontecer assim arriscamos assistir a uma grave crise que pode surgir se os países experimentarem colapso econômico e caos social”. Pelo resultado das negociações, com pouco avanço em ações transformadoras e falta de ambição, pode-se esperar pelo pior para toda esta década que se inicia.

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Claudio Fernandes, economista da Gestos e do GT Agenda 2030. 

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